segunda-feira, 30 de maio de 2011

UM ENCONTRO NA FONTE DO CARI-IÓC

LENDAS DA FONTE DA CARIOCA

por Márcio José Rodrigues

O horroroso grito de dor não abafou o som cavo, oco, da cabeça estourando. O corpo caiu ao solo, e já, num instante, imóvel.  
O primeiro combate real e o primeiro ser humano de quem tirava a vida.
O feito heróico foi celebrado na taba e cantado nos serões ao pé do fogo. Mais ágil que o tapuia, o jovem carijó brandira no ar a pesada clava, atingindo-lhe em cheio o crânio.
Passavam-se, porém,  as luas e o espectro horrível do morto tornava suas vigílias insuportáveis, sem que abandonasse seus sonhos e deixasse de torturá-lo nos pesadelos das noites sem fim. Se fechasse os olhos, via à sua frente, naquele rosto pintado de urucum, a expressão de ódio e medo; se os abrisse, o vulto esgueirava-se furtivo pelas sombras. Muitas vezes, deixara o conforto da rede para persegui-lo, em vão, na noite fria.
            O encontro com o tapuia foi uma experiência brutal. Como num salto, rompeu definitivamente as amarras com os últimos traços de meninice que porventura ainda existissem nele. Já não mais sentiria a antiga alegria nos jogos com os amigos, as ruidosas correrias e os banhos na lagoa. Embrenhava-se na mata por dias a fio em caçadas solitárias ou em longas caminhadas pela planície arenosa à beira-mar.

Após uma dessas demoradas ausências, ao retornar à aldeia, tomou uma velha trilha na mata costeira. Sedento, dirigiu-se à fonte do "cari-yóc"  na hora mais quente do dia, o sol quase a pino no céu.
A água cristalina brotava borbulhante do chão. À frente de um barranco, formava um poço circundado por velhas pedras cobertas de limo e transbordando em um córrego de pouca largura que corria na direção da laguna.
O lugar situado no encontro de duas colinas na orla da mata, estava guarnecido em ambos os lados por frondosas árvores a ostentar em sua grossa galharia, exóticas bromélias e musgos pendentes, como se fossem longas cabeleiras. Elas delimitavam um amplo espaço ensombreado, enfeitado em toda a extensão pelas mais belas orquídeas, lilases e azuis, outras amarelas e em cachos, debruçadas dos ramos.
Era como uma grande caverna de ramos e folhas, fresca e agradável, o chão revestido por uma larga esteira de um verde-castanho  de musgo macio e folhas secas.
Depois do entardecer, nem o mais ousado dos guerreiros aproximava-se daquele lugar.
Na noite escura, por lá se reuniam os espíritos maldosos da floresta, o Kurupi e os animais da noite, quando o traiçoeiro jaguar bebia a água e o sangue de suas presas.
Mas, era nas horas claras do dia, o ponto de encontro das alegres cunhãs a buscar água pura os afazeres de suas ocas e da algazarra dos curumins a exercitarem a pontaria de seus arcos no passaredo e nos bandos ruidosos de aracuãs.

Bem a frente desse lugar paradisíaco plantava-se a grande aldeia dos  carijós que povoavam a terra de Embiaçá.

A figura vultosa do caçador, assomando repentina, produziu assombro e susto nas mulheres, iniciando de pronto enorme confusão e alarido que se transformaram em alegre manifestação de festa e risos, tão logo o reconheceram.
Ele, fingindo altiva indiferença, aproximou-se, inclinando-se para apanhar a água com a concha das mãos. Tão sedento estava, não percebeu do outro lado da pequena fonte, uma jovem ajoelhada, que se dispunha a encher a igaçaba.
O fundo de limo negro transformara a superfície em um espelho a refletir os pequenos retalhos azuis de céu por entre as brechas da ramaria.
Então ele viu, a dançar no espelho, aquele rosto de mulher a espreitá-lo do fundo, quase irreal, como se fosse um espírito das águas.
Reteve o movimento da mão para não quebrar a imagem. Cerrou os olhos por uns momentos, como a querer certificar-se de que não era apenas um feitiço da fonte.
Quando os reabriu, o rosto ainda estava lá.
Levantou devagar a cabeça, desvendando aos poucos a figura à sua frente. Os joelhos, as coxas, os seios e finalmente a face da bela mulher a estender-lhe um pote de argila.
- Tupã, como é linda! - foi o único pensamento que lhe acorreu. Muito mais que a lua no alto do céu, que o sol a nascer no horizonte da grande praia do Gi...
Mais ainda do que poderia ser a própria Iara.
- Iboti, ela adiantou, é meu nome. É a palavra  que recebi dos sonhos de meus pais ao
 nascer.
- Por que me deste água fresca da fonte para saciar minha sede? Agora estarei para sempre ligado a ti e ao teu destino.  Tu me conheces?
- Tu és Tanh'aranha, o mais valente guerreiro de toda a nação carijó. És tu que estás presente nos sonhos que Nhanderu-ête me manda todas as noites.
- Tu és Iboti, a flor!
Tanh'aranha tomou-a por esposa e no aconchego de seu corpo quente e nu, nunca mais o espectro do tapuia perturbou suas noites de sono.



Caraí -yóc, Carió  = pele clara, carijó, indio guarani habitante da costa sul do Brasil, inclusive, Laguna
curumin= menino
Carioca = fonte do Carijó? (observação do autor))
cunhã  = moça
Igaçaba = pote de argila de várias utilidades
jaguar = onça
Kurupi, curupi = espírito mau
Embiaçá, M'biaçá = Laguna
Nhanderu-ete = Deus, divindade suprema dos guaranis
Tanh'aranha = último cacique dos carijós de Laguna. Teria se lançado ao mar, para não se submeter à  escravidão nas fazendas de São Paulo.
Tapuia = índio do grupo gê, mais arredio e selvagem que o carijó.
Tupã = Divindade tupi-guarani.
Yara, Iara = espírito das águas em forma de uma mulher belíssima.



2 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro prosador, poeta e pintor.
Mais uma vez me delicias com tua criativa inteligência. Que lindo! Que lindo! Alencarino mesmo! Que gostosura de leitura, ainda mais com o necessário vocabulário auxiliar da nossa real língua-pátria, da qual nos privaram o uso e o conhecimento geral. O quadro descrito em prosa é todo uma poética, amorosa mesmo, pintura clássica nos mínimos detalhes. Tão clara que até os amantes surgiram, explendidamente desenhados. Honras também teus excelentes professores de português.
Márcio, muito obrigado por dividir com a gente o recontar das lendas, fábulas, tudo dentro de uma verdade histórica de alguma forma vivênciada.
Mais uma vez, Márcio, meus sinceros parabéns pelo bom uso que fazes dos dom com que foste agraciado pelo nosso Bom Deus, pleno de Amor e de Misericórdia. E que Ele proteja sempre a ti e a todos os que te são caros.
De teu fraterno amigo e ex-colega João Jerônimo.

Anônimo disse...

Maravilhosooooooooooooooo esse poema amigo Doutor.
Com direito a lermos o linguajar indígena. Fonte dos Amores.
Diz o ditado popular "Quem bebe desta água sempre retorna a Laguna e a seus amores.
Abração Márcio..... Parabéns pelo lindo poema.



Maria de Lourdes Castro