sábado, 22 de abril de 2017


O ARTIGO TERCEIRO (5)

REFLEXÕES SOBRE O PODER

                                                                                            márcio josé rodrigues


Um cheiro desagradável de bolor, umidade e restos fecais em decomposição dominava o espaço da quase escurecida caverna naquela hora mais quente do dia.
Mesmo que a esta hora todos os seus ocupantes devessem estar adormecidos, Sapolítico não conseguia fechar os olhos descomunais.
Uma angústia incontrolável comprimia-lhe o peito à medida que a ansiedade se descarregava em tiques nervosos em seus pulos de cá para lá e de lá para cá num vai vem interminável pelo chão lamacento do recinto. A imensa boca estava seca e o papo tremia num ritmo descontrolado, embora sem emitir algum som. À medida em que a boca mais secava, a baba espessa lhe colava a língua ao céu da boca.
Sapolítico sentia medo, muito medo.



Alguns assessores, sapolíticos menores distritais, traziam-lhe notícias dos "currais" daando-lhe conta das dificuldades em conseguir os preciosos sufrágios necessários para sua permanência no poder. Os chefetes dos clãs e proprietários da vontade dos eleitores na disputa eleitoral revelavam seu grande descontentamento com o último governo que, não cumprira as promessas da campanha eleitoral nem honrara os compromissos individuais.
Esta, Sapolítico teve que engolir, mesmo com a boca seca.

A cada chefe de grupo local a quem pediam sufrágios, obtinham exigências de trocas, barganhas, nomeações para mais cargos e favores, além do câmbio direto em moeda corrente, sem o menor pudor ou vergonha na cara.
O mais celebrado cidadão, tido como modelo de caráter, alicerce moral das antigas tradições, exemplo vivo às futuras gerações, também votaria no candidato, com a condição de cumprimento de certas exigências em favor pessoal e da família.
O velho Sapolítico, acostumado a viver deste jogo por décadas, sabia muito bem das causas para que se chegasse a este ponto.
Seu partido e seus governos sucessivos haviam destruído a educação, ridicularizado as crenças, explorado a fraqueza dos necessitados e a ganância dos ricos.

Em Lagoa não havia mais sufrágios de graça como nos velhos tempos em que se votava num cidadão e em suas propostas, por direito e vontade cívica livre de cada um.

A busca desenfreada pelo poder determinara a corrosão das consciências e tornara o precioso e sagrado sufrágio em reles matéria de barganha. 
Na medida em que se digladiavam na conquista de um eleitor, o preço por um voto tornara-se impraticável e, sem o respectivo pagamento não havia voto.

“Toma lá, dá cá”, “é dando que se recebe” e mais a velha e simples lei da oferta e da procura.




Sino português - do reinado de Dom João I instalado com a criaçao da "Villa da Laguna de Santo Antônio" em 1714. (roubado  e não procurado do Museu Anita Garibaldi em 2016)



Réquiem para uma cidade

Minha querida cidade
Onde passei minha infância,
Onde colhi a fragrância
Dos dias da mocidade.

Onde plantei os meus sonhos,
Onde sonhei meus amores,
Onde, nas mãos de impostores,
Chegaram dias tristonhos.

Venho encontrar-te em desgraça
Abandonada na rua,
Miserável, pobre e nua
Em tua fria carcaça.

Ao teu cadáver,  a massa
Baixa os olhos, de vergonha,
Toda esta gente pidonha,
Indiferente, que passa.

O que fizeram contigo?
Quem te feriu desse jeito?
Quem rasgou assim teu peito
E te infringiu tal castigo?

Pobre,  mendiga cidade
Das ruas cheias de lixo,
Do " cidadão" que é um bicho,
Que te suga sem piedade.

Seu  caráter,  tão rameiro,
Que mesmo não sendo pobre,
Por umas moedas de cobre
Te vende por vil dinheiro.

Gente que se acha astuta
Faz do voto um rendimento,
Como o gigolô nojento,
Que vive da prostituta.

Só te sobrou esta escória
Para suster teu presente?
O que quer toda essa gente
Que te perdeu a memória?

Ao turvar este teu  brilho,
Ao te cavar teu jazigo,
Na mesma tumba, contigo,
Sepulta seu próprio filho.

Pois, quem mata sua terra,
O próprio destino sela:
Também vai  morrer com ela
E a mesma cova o enterra.
  

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