quarta-feira, 23 de março de 2011

DIA MUNDIAL DA ÁGUA


A HISTORIA DE CRISTAL  
      por Márcio José Rodrigues          
           
Quando a gotinha d'água, "Cristal", olhou para baixo, viu pela primeira vez a imensidão do oceano. Nunca imaginara que podia ser tão belo, muito mais do que já lhe haviam contado. Parecia ao mesmo tempo misterioso e amedrontador, contemplado daquela altitude em que se encontrava, no meio do céu.
            Estava verdadeiramente deslumbrada.
            Não que, já não tivesse experiência de grandes jornadas. Já havia navegado enormes distâncias sobre florestas, desertos e campos.  Tivera muitas oportunidades de contemplar majestosas paisagens, grandes rebanhos de animais e trigais dourados iluminados pelo sol. Uma vez sobrevoara uma verdejante floresta entrecortada de rios. Era tão inacreditavelmente imensa, que ficaram muitos anos sobre ela, considerando, é claro, as idas e vindas do humor do vento.
            Mas, jamais estivera sobre o mar.
            A noite toda fora de grande apreensão, de inquieta angústia, pois na verdade era a primeira vez em sua existência, que ela iria chover. Nunca sentira tanta agitação em torno e nem aquela energia furiosa que estremecia e fazia tudo rodopiar dentro da nuvem mãe. Felizmente, ao seu lado, seu amigo Pingo, companheiro inseparável de todos os momentos, esforçava-se por encorajá-la, mesmo sem deixar escapar seu próprio medo, no aperto nervoso e firme de sua mão entrelaçada à dela.
            Por fim, o momento.
            Pularam de mãos dadas, quando gritaram juntos:
            - Agora!
            O mar gelado, em turbilhão, revolvia, furioso, as águas espumantes, lançando-se em ondas monstruosas contra os rochedos, rivalizando em seus rugidos com o ribombar dos trovões das nuvens em tempestade.
            Nem chegara ao seu destino, Cristal já se desprendera da mão do amigo. Gritou, bradou por seu nome, sem resposta, mesmo porque nem conseguia ouvir sua própria voz em meio à infernal tormenta.
            Sacudida, arremessada de cá para lá, cavalgou as cristas dos vagalhões, fez-se branca espuma e, subitamente, num grande redemoinho, foi de repente tragada para as profundezas do abismo, onde a escuridão impenetrável não lhe permitia ver qualquer coisa, nem tampouco mover-se entre as outras, a uma pressão insuportável. Ainda não avaliara bem estes acontecimentos surpreendentes, quando adormeceu vencida pelo cansaço, pensando com saudade na imagem do seu querido amigo.
            Quando o dia amanheceu, o mar havia completamente transmudado. Estava agora tranqüilo e calmo, liso e brilhante como um espelho, iluminado e emitindo reflexos multicoloridos do magnífico nascer do sol no horizonte. O céu ia cambiando tons azulados, róseos e lilases, à medida que um calorzinho gostoso aquecia a superfície das águas.
            Cristal boiava preguiçosamente e tão arrebatada estava com essa sensação de bem estar, que até temia mover-se, receosa de quebrar o encantamento.
            À medida que o sol se elevava e trocava vagaroso sua vestimenta de luz, do vermelho para o amarelo, também ia aumentando o calor, enquanto uma leve brisa principiava a movimentar tudo em volta.
            Lentamente, a princípio, e mais perceptivelmente logo depois, foi se sentindo leve, sempre mais, a ponto de flutuar no espaço, deixando o mar cada vez mais distante.

            O que aconteceu depois foi uma sucessão interessante e maravilhosa de idas e vindas, imensas viagens e experiências fantásticas, sem nunca retornar a um mesmo lugar ou a uma mesma paisagem. Foi neve no inverno e cobriu os campos para preservar a incubação das sementes, gelo nos cumes a se derreter na primavera e despencar alegremente por rochedos íngremes em caudalosas cascatas. Também foi simples orvalho numa pétala de flor.
            Numa manhã de sol surpreendeu-se gotejante em uma pequena fonte a murmurar cantigas e fazer coro com pintassilgos sedentos e festivos. Desceu vertiginosamente por corredeiras, choveu sobre grandes plantações, deslizou suavemente por peregrinos rios a caminho do mar.
            Esteve em fontes subterrâneas, foi capturada e presa em vasilhas engraçadas usadas pelo mundo dos homens.
            Foi assim que certa vez, participou de uma suntuosa festa na mansão do senador. Estava agora compondo um cubo de gelo e tilintava em um finíssimo copo, com uma bebida forte. Por toda parte, um burburinho de festa, muita gente de aspecto rico, mulheres jovens e extravagantes e homens maduros, metidos em trajes requintados. Tudo acontecia em meio a muito riso e ruído, uma fartura sem conta de alimentos exóticos e raros. Lacaios vestidos de impecável branco corriam azafamados para servirem ao menor gesto, os convivas.
            Tratavam-se solenemente, ora com intimidades, davam-se abraços e falavam de grandes projetos, trocavam-se favores e prometiam-se apadrinhamentos e contratos de negócios escusos de imenso valor.
            Quando a festa terminou, a imensa profusão dos restos em desperdício foi despejada em latões e, ela mesma, Cristal, derramada por um ralo.
            Viajou por tubos escuros, malcheirosos, fétidos, até chegar a um lago e então, sugada por estranhas máquinas, tratada e filtrada e, novamente, conduzida por tubos.
            Certa tardinha foi sorvida com avidez por uma criança de aspecto doentio. O ambiente onde se encontrava, em tudo retratava dor, sofrimento, ansiedade, como se uma nuvem invisível e cinzenta pairasse sobre aquele lugar.
            Enfermeiras vestidas de branco corriam, socorriam, vociferavam; outras pessoas sofriam caladas, algumas choravam deitadas em extensos corredores. Outras mais, ainda esperavam em melancólicas filas.
            Portando uma folha de receita médica, uma das enfermeiras, visivelmente desesperada, trazia ao colo uma menininha em estado muito grave e solicitava veementemente algumas coisas urgentes.
            - Rápido, um leito!
            - Estão todos ocupados!
            - Ela precisa de soro!
            - Não tem mais!
            - Um antitérmico!           
             - Acabou!
            Vencida, a enfermeira aconchegou a menina ao próprio peito e encostou sua face ao rostinho febril. Era a única coisa digna que poderia fazer com aquele impulso  espontâneo de ternura. Queria fazer-se de forte nesta hora, mas não resistiu. Uma lágrima teimosa brotou de seus olhos.
            Ao mesmo tempo, como que pedindo algo desesperado que a moça não lhe podia dar, do canto de um dos olhinhos da criança, também uma verteu.
            Era Cristal!
            Cristal ao ver a outra lágrima na face da enfermeira, gritou eufórica:
            - Pingo!
            -Cristal! – ele bradou, numa grande explosão de surpresa, saudade e um sentimento imenso de alegria, misturado ao mesmo tempo, com tristeza e dor.
            Pingo rolou sobre o rostinho em fogo. As duas gotas juntaram-se e escorreram até o canto da pequena boca sedenta e foram avidamente sorvidas como a última carícia concedida à pequena vida que se estava acabando ali.
            Cristal e Pingo, depois de imemorável tempo, estavam milagrosamente juntos e, desta vez, naquele corpinho inerte. Com ele viajariam para o fundo da terra, acompanhando à última morada, a menininha roubada em seus direitos mais elementares de existir.           
            Um dia, quando a primeira plantinha brotasse na pequena sepultura e todas as gotinhas subissem por suas minúsculas raízes, a menininha, por certo, já não mais estaria lá.
            E foi assim:
            Pingo e Cristal galgaram as raízes; depois, o delicado caule e chegando às verdes folhinhas, contemplaram de novo o sol brilhante. Outra vez, como tantas outras vezes no passado, foram-se sentindo cada vez mais leves e ganharam o espaço do céu azul.
            Cristal estava iniciando uma nova aventura, mas desta vez, levaria para sempre na lembrança, algumas coisas que aprendera e que a haviam deixado muito impressionada:
            A decepção com o mundo dos humanos, o desamparo e abandono daquele triste hospital, num contraste tão grande com a suntuosidade e esbanjamento da festa na mansão do senador; mas também levava a amizade de Pingo, o amor em sua forma mais pura, no gesto dramático da enfermeira e a vitória da menininha, que ela vira subir com o rostinho iluminado por um sorriso que ela só tinha encontrado nos bichos e nos anjos.

5 comentários:

Marcinho José disse...

Me faltam palavras para dizer o quão belo é este seu escrito.

Recordo-me de que, ao ler este texto pela primeira vez, há já algum tempo, algumas lágrimas insistiram em escorrer pelo meu rosto.

Neste momento, bem possível que sejam Cristal e Pingo a deslizar alegremente pelas curvas de minha face.

Pouco antes de passar a ter 46 cromossomos, devo ter reclamado com o feiticeiro que criou essa magia toda chamada vida.

Entendi que ser tão somente fã ficaria aquém de minhas expectativas. Relutou um pouco, mas acabou cedendo: me fez filho.
Um grande beijo. Márcio Filho

Amanda Andrade disse...

Que texto delicinha de ler. Parabéns sogrinho pela sensibilidade dessa composição. Beijoca.

Anônimo disse...

Que poema DIVINO.
Emocionei

Maria de Lourdes Castro

Sandra Helena Queiróz Silva disse...

Querido Márcio,

O quanto me encanta ter um cantinho virtual aconchegante para uma leitura de alto nível.Parabéns!
Vou inclui-lo ao meu blog " O mundo de uma poetisa"colocando-o entre os meus preferidos e quando quiser aceite este convite, para participar da Casa da Poesia de Renato Baptista da cidade de São Paulo.
http://casadapoesia.ning.com/

Beijos de Luz!

Anônimo disse...

Só a sensibilidade de um poeta para descrever a grandiosidade e importancia de um "singelo" pingo de chuva, que junto a nós desce a terra e sobe aos céus. Obrigada por mais este presente.
Verônica