O ARTIGO TERCEIRO (7)
A MOSCA AZUL
márcio jose rodrigues
Já faz incontáveis eras que os sapolíticos esquartejam e
dividem entre si o poder sobre Lagoa. Desde imemoráveis tempos os sapoderosos
vêm montando uma intrincada rede, um emaranhado de truques e armadilhas para
chegar aos seus fins e legitimar a divisão e mando sobre os demais.
Foi assim que criaram os sapartidos políticos.
Sapartidos são labirintos ideológicos cheios de doutrinas e
segredos, cores e bandeiras, incontáveis siglas e credos falsos. São tantos os
sapartidos, que o atônito povo fica desnorteado e então segue os apelos da
sapropaganda dos Sapeéssedês, Sapetês, Sapeésses, Sapsóis e dos sapeláquemaisoquê.
Cabe aos
sapartidos apontar seus paladinos ao grande torneio eleitoral da primavera, um
Saprefeito e alguns veraneadores (sapolíticos que tomam posse no verão – mas há
controvérsias).
Como os anfíbios são avessos ao frio e só gostam de aparecer
nos tempos de calor, convencionou-se também chamar assim a um grupo de eleitos encarregados
de fazerem e adaptarem as leis lá na Toca do Povo e de acordo com as marés e
seus próprios interesses. A toca do povo foi rebatizada de Câmara dos
Veraneadores.
Para muitos
sápios e sapensantes, veraneadores são um anacronismo, um peso morto na
economia e nem deveriam mais existir.
Quem os coloca lá no topo, quem legitima seu “status”,
paradoxalmente, somos nós os bagres, tudo na forma e na força da lei.
De quatro em
quatro anos ou 210 luas no tempo contado à nossa moda, somos obrigados pela
força da lei a escolher os nossos representantes no poder lagoense através do
torneio eleitoral, “a guerra dos sufrágios”.
O torneio também é um jogo de risco inevitável para evitar
males maiores, até mortes, mas também uma chance de mudarmos o destino de Lagoa
e banirmos os malfeitores para o esquecimento e desterro político.
Perdoem-me as ostras, mas isto é o que nós chamamos
ostracismo.
Mas, uma estranha anomalia, uma espécie de doença mental
toma conta de Lagoa inteira nos tempos do torneio. Para alguns, escolher os representantes
no governo é um momento solene de responsabilidade e dever.
Infelizmente, para os demais, somente uma farra, um tempo de
alucinação, perda total do juízo, um desligamento mórbido da realidade onde
amigos tornam-se inimigos mortais e famílias rompem elos imortais.
Um sufrágio, o voto, é uma fagulha de poder que até aos
bagres é concedida, mas somente por um segundo num período de exatos 1.461
dias.
Uma preciosa, frágil e enganosa mosca azul.
É a efêmera, mas suprema autoridade e direito de escolher seus
governantes.
Conta-se que a certo vivente foi concedida por Mãe Natureza,
uma visão profética sobre seu sufrágio.
Em transe ele se viu como um dos candidatos ao poder. Em suas
mãos haveria uma Lagoa limpa e embelezada, trilhas bem cuidadas, todos os
filhotes na escola, saprofessores satisfeitos, uma sapolícia civilizada garantindo
segurança e todo o povo feliz, cada um desempenhando seu papel com alegria e
satisfação.
Também mostrava como seria Lagoa nas mãos de Sapolítico, o
inverso de tudo, uma visão tenebrosa do caos, da desorganização, da mentira e da
fraude, das greves, dos protestos, do roubo, do crime, do desemprego e as crianças
chorando de fome.
A história correu todos os recantos.
Os viventes ficaram deslumbrados com as maravilhosas
revelações. Finalmente, uma luz na escuridão começava a brilhar e uma nova
esperança pairava sobre o destino de Lagoa.
As multidões o seguiam como a um comandante autointitulado o
“soldado eleitoral”, defensor da terra mãe, da decência, da ordem e do direito.
Sapolítico não tardou a perceber esta força descomunal.
Usando as artimanhas da velha sapolítica ancestral, jamais o atacou, mas passou
a segui-lo como toda a massa. Em pouco tempo já marchava ao seu lado, apresentando-o
como o novo salvador, não mais um simples soldado. Sem perder a oportunidade e
com muito bom papo logo o promoveu a um posto mais destacado, “cabo eleitoral”,
um modelo, o paradigma, cuja palavra deveria ser ouvida com atenção.
O recém promovido
cabo eleitoral passou a gostar das bajulações, dos abraços e da comida farta dos
banquetes e em pouco tempo a visão saprofética foi se contorcendo, desbotando,
esfumaçando-se.
Sapolítico já o tinha quase fisgado pela vaidade.
Em uma noite escura e silenciosa, numa ceia estupenda de
finas iguarias, regada a sucos raros, bateram muito papo.
Soprou-lhe o medo!
“E se perdesse o
torneio? Como enfrentaria a vergonha, o que diria a família?
Faltava agora só o veneno da ganância.
Sapolítico estendeu-lhe uma taça reluzente e lhe fez provar
um gole de uma bebida mais doce que o lendário hidromel, o novo ópio dos
deuses, a sapropina!
A sapropina mostrou-lhe
uma trilha mais eficiente que o esforço, mais segura que o risco e mais suave
que cansaço do trabalho, uma mágica mais rápida de se igualar aos sapoderosos, de
ser visto ao lado deles, de morar em tocas iguais, de frequentar os mesmos lugares,
de reinar sobre os insignificantes.
O profeta da visão cósmica agora era um novo saprofeta a
serviço de “o poder”.
Os demais crentes que o seguiam como carneiros também passaram
a barganhar seus sonhos contidos em cada sufrágio, por uma cuia de minhocas e
besouros consumidos em um só dia.
Sapolítico venceria mais uma vez.
A vitória trazia seu pesado ônus de viver eternamente a sina
de medo e da ansiedade.
Tinha um longo caminho a percorrer entre barganhas e acordos
para conviver com os insaciáveis veraneadores.
À sua frente o implacável “fio da navalha” (1) por onde
haveria de caminhar todos os dias enquanto ambicionasse o poder.
Em pouco tempo o pobre saprofeta , foi abandonado à sua
miséria e como um demente, molestava os passantes, tentando contar-lhes sua
triste história de como teria sido se não matasse sua oportunidade.
Para ele chegara o ostracismo.
A Mosca Azul (Machado de Assis)
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"
Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Caxemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje quando ele aí sai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.