quarta-feira, 31 de agosto de 2011

PARA ANITA NO DIA DO SEU ANIVERSÁRIO


por Márcio José Rodrigues

Eu era louco por serenatas.
Uma noite de apagão e lua cheia, procurei meus amigos para a seresta, mas não os encontrei. Já era madrugada quando me sentei sozinho à beira do cais, sentindo o frio de uma brisa do sul, uma gaitinha de boca e uma melodia estranha e antiga que teimava em não sair da minha mente.

            [...] num dado momento ergui a cabeça e a vi!
            Vinha caminhando lentamente sobre o cais, na minha direção.
            Um arrepio perpassou-me todo o corpo, o coração começou a bater descompassado e nem pude esboçar qualquer tipo de reação.
            Repentinamente, tudo em volta pareceu mais frio. Uma sensação de gelo no estômago, quem sabe um pouco de medo, ansiedade, mas era algo diferente, porque havia muita paz.
            A silhueta era de uma mulher esbelta, ereta e impressionava à primeira vista.
            Uma longa saia muito rodada, que não lhe deixava ver os pés, esvoaçava leve, abria-se como um leque e drapejava ao sabor do vento. Do outro lado, colava-se ao corpo, mostrava-lhe o contorno, marcando a cintura muito fina. Sobre os ombros, um xale de renda açoriana, como aqueles que urdem as rendeiras da Barra.
            Uma vasta cabeleira negra, presa em parte, atrás, à nuca, escondia-lhe o rosto à sombra e refletia tons azulados à luz do luar.
            Uma das mãos trazia sobre o peito, segurando as pontas do fino agasalho. A outra, apertava contra a saia, junto ao corpo, num gesto de recato.
            Eu nem me havia recobrado do impacto da surpresa, quando ela me perguntou com uma voz suave e delicada, mas muito envolvente e segura.
            - Isso que vosmecê traz na mão é uma arma?
            Dei-me conta que, um tanto nervoso, eu apertava com muita força, a gaitinha de boca, com a mão suada. Levei algum tempo para me compor, mas ela aguardou pacientemente a resposta. Esqueci até de levantar-me e acho que falei meio gaguejando:
            - Não... não!  É uma harmônica, uma gaitinha de boca... É quase como uma flauta. Soprei uma nota, que ficou tinindo no ar por uns momentos.      
            Ela pareceu não dar muita importância e me senti um pouco tolo, infantil.
            - Então vosmecê não é soldado? 
            - Eu, soldado?  Não sou, não!
            - O que vosmecê faz?
            - Sou professor! - respondi!
            - Professor...
            Pronunciou a palavra professor, num tom que revelava admiração.
            E sem esperar minha resposta, continuou:
            - Só não gosto que batam nas crianças com a palmatória. Vosmecê faz isso?
            - Não! - respondi. Há muito tempo que não se usa mais a palmatória. Não se fazem mais essas coisas hoje em dia. E não revelei, envergonhado, que hoje fazemos pior: nós as matamos de desencanto e de fome de saber. Além disso, continuei, já falando um pouco mais solto, não ensino a ler e escrever. Ensino Biologia, acrescentei com ar de importância, não escondendo a vaidade.
            - Isto eu não compreendo!
            - Biologia, expliquei mais confiante, é uma ciência que estuda sobre a vida, os animais, as plantas... Você sabe, os seres vivos, nascem, crescem, dão frutos...
            - E morrem! - completou.
            Ficamos calados por algum tempo e depois ela continuou:
            - Vosmecê ainda não morreu...
            - Não! Claro, que não! - interrompi.
            - Então, vosmecê, senhor professor, ainda não sabe quase nada!
            Novamente ficamos quietos e parecia que o assunto se acabara. Rebuscava na mente, mas não me vinha nada à cabeça para dizer. Estava me sentindo como um palerma.
            Foi ela quem recomeçou:
            - Já estive aqui neste lugar, antes, muitas vezes. Havia grande movimento de veleiros de carga e barcos de guerra. Eram tempos muito difíceis, mas também, muita coisa bonita aconteceu. Estas pedras não existiam aqui. São tão lindas, tão lisas, parecem que foram cortadas com uma faca. Os barcos ficavam ancorados ali no canal.
            E depois de uma pausa...
            - Era tempo de gente generosa e de coragem. A cidade mudou um pouco. Parece que vosmecês, também!
            Agora a voz foi tomando um timbre mais suave, quase um misto de ternura e certa tristeza.       
            - Sabe? - segredou:  Eu amo este vento e sinto muita saudade daqui!
            - Você não é feliz? - arrisquei perguntar.
            - A gente pode ser feliz e mesmo assim, sentir saudade! A saudade boa é doce. Todos os que eu amo, já estão comigo.
            Eu não podia ver seus olhos, mas acho que chegou a chorar quando falou:
            - Só este lugar não deu para levar. Este meu pago, só aqui, no meu coração!
            Calou por um instante, segurou a barra da saia com cuidado e graciosamente, sem me estender a mão para ajudá-la, sentou-se ao meu lado. Então, para surpresa minha, começou a cantarolar suavemente aquela canção antiga, a mesma melodia que eu trazia na mente. A voz harmoniosa e agradável levou-me por uns instantes a um momento de enlevo, quase que de sonho.
            Voltei-me para olhá-la, mas ela já não mais estava ali. Sua imagem havia desaparecido completamente, como uma ilusão fantasmagórica. Só a voz ainda permaneceu por uns instantes mais, vinda nas lufadas do vento.
            Nem me lembrara de perguntar quem era aquela impressionante mulher, qual o seu nome, de onde viera e também nunca mais a vi.
            Mas, aqui dentro do meu coração, eu sei muito bem.
            Jamais esquecerei as palavras carregadas de sentimento daquela triste canção.


Galopa vento do meu pago,
As minhas velas enfuna,
Que tenho pressa do afago
Da minha doce Laguna.

Farrapo, meu peito trago,
Das marchas desta coluna.
Meu Capitão, por que vago,
No tempo com esta escuna?
Por mais que singre outro lago,
Anseio estar na Laguna.

Antônio, meu santo orago,
Concede graça e fortuna,
Se existe força, te indago,
Que à minha terra me una,
Pois sinto pressa do afago
Da minha doce Laguna.

Assopra meu vento mago.
Revoa, areia da duna.
Galopa vento do meu pago,
Faze voar minha escuna,
Que tenho pressa do afago
Da minha doce Laguna.


texto, poema e postagem márcio josé rodrigues

 
                           
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4 comentários:

Anônimo disse...

Belo conto e belo poema. E feliz do povo que tem na memória o vulto dessa mulher destemida.Muito bonita a sua homenagem. Parabéns. Abraço. Fatima Barreto.

Anônimo disse...

Meu amigo,
Alguém baixou neste corpo; Papaco que coisa linda, que maneira sutil
de narrar um colóquio, tenho certeza, que muitos teriam prazer de ter participado desta conversa, eu inclusive, pois poderia perguntá-la se algum dia teríamos alguém na direção de nossa Laguna que pensassem realmente no seu maior patrimônio, o povo.
Um grande abraço
@fonso

Gladys S. Alcantara disse...

Muito lindo Dr Marcio, até renovou meu amor por nossa Laguna, sem contar que me fez lembrar os tempos de escola em que o senhor foi meu professor lá no Ceal.
Parabéns
Gladys S. Alcantara

Anônimo disse...

Linda prosa e lindos versos. Saudades e orgulho do meu professor de Biologia que, eu ainda lembro, tocava lindamente sua gaitinha de boca. Bjs
Rachel