quinta-feira, 31 de março de 2011

MINHA VERÔNICA

por Lúcia Maria Barros da Silveira
      Jornalista

Não adianta!
Por mais tempo que passe, há lembranças das quais nunca nos desfazemos.
Na minha Laguma querida na casa onde cresci morava a Verônica. Quanto encantamento era isso. Minha tia Lourdes desde sempre em minha vida, durante essa época de quaresma tomava a si esse personagem tão essencial para nos cristãos católicos.
Já sabíamos que a procissão de Passos estava por chegar quando começávamos a ouvir, do segundo andar de minha casa, os ensaios solitários de nossa amada Verônica.
Soprano exímia e nata, tinha em seu cantar o poder mágico de encantar.
Mas, como Verônica seu canto se transformava no lamento tão conhecido por gerações de lagunenses.
Desde pequena tenho fascinação por essa época do ano.
Via a capa da Verônica chegar em casa para ser limpa. Passava as mãos lentamente no veludo azul escuro com aplicação em dourado nas bordas. Sentia uma emoção tão grande de ter tão perto esse objeto que dava identidade à figura central do grande teatro cristão realizado a céu aberto relembrando e reverenciando as dores de nosso Senhor.
                                                             

Ainda criança, ia para a sala atrás da sacristia onde as figuras se vestiam. Vi muitas moças se transfomarem em Madalena e São João, outras em beús.O canto das beús ate hoje vem claro a minha mente.
Quem nunca se arrepiou ao ouvir as batida no chão, da lança dos centuriões?
Minha Verônica começava sua preparação cedo. Ia ao salão, pois seu penteado era especial. Colocava um pequeno aplique que guardava com muito cuidado.
Praticamente sem maquiagem, no começo da noite ia para igreja.
Lá começava sua transformação. O camisolão de branco impecável era vestido. Já com a linda tiara de pedrarias na cabeça esperava a hora de começar.
Dado o sinal, apanhava o mítico manto e o vestia.
Pronto!
Com o sudário enrolado em suas mãos, já não era mais minha tia, era sim, a dolorosa figura daquela que enxugou o santo Rosto em seu calvário.
Vivi os bastidores dessa tradição centanaria por mais de uma década. Mas o melhor ainda viria.


 No ano de 1982, com 18 anos, recebi o honroso convite para ser Madalena. E vivi momentos inesquescíveis. Com o vestido cuidadosamente elaborado por dona Natalia, costureira exímia, passei de observadora a protagonista da centenaria tradição. Ao lado de minha Verônica acompanhei as procissões de Passos e do Senhor Morto.
Posso afirmar que é algo glorioso. Sou grata a Deus por ter me dado essa chance.
Ver minha Verônica cantar ao meu lado aquele som sentido, aquela voz abençoada, aquela cidade em suspense.
Memorável.
Vivi poucos momentos que se comparem àqueles.
Foi o último ano que minha tia cantou como Verônica.
Despidas de nossas personagens naquela quaresma já tão distante voltamos solenes para casa.
A experiência tinha me tocado profundamente.
Saímos pelas ruas de nossa cidade, lado a lado, como Verônica e Madalena e sacramentadas, voltamos para nossa casa como Maria de Lourdes e Lucia.
Mas aquela quaresma tem estado em mim em todas as quaresmas que se seguiram.
A Madalena que fui, vivi aqui dentro e minha Verônica vive, em nós todos nós para sempre.

(imagem El Greco - Santa Veronica con el Sudario- 1559)

3 comentários:

Anônimo disse...

Caros Márcio e Lúcia, sem dúvida uma crônica oportuna, bonita, que faz fluir muita vida, em forma de memória, ao nosso relicário afetivo cristão e artístico. Parabéns à jornalista pelo texto e ao blogueiro, pelo espaço cedido. Nos trazem à lembrança Maria de Lourdes Barros, soprano talentosa, como outros grandes artistas da voz que tivemos e temos, na nossa Laguna. Abraço da Ma. Fatima B Michels.

PRA disse...

Márcio,
Obrigado por comparilhar conosco estes momentos de recordações, que são as procissões de Passos e do Senhor Morto, descrito com perfeição neste texto de Lúcia M. Barros da Silveira.
Lembro-me muito bem de Dona Maria de Lourdes Barros. Inesquecível Verônica.
Magnífico!

Anônimo disse...

Muito bom ler essa crônica...
Voltei no tempo.
Lembro direitinho de tudo isso.
Tempo bom...
Saudade da D. Maria, como a chamávamos no colégio.
Parabéns à Lucia pela crônica e parabéns ao Márcio pelo blog.
Abração,

Vera Rotolo